quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Literatura de Quinta, por Rody Cáceres



Aconteceu na livraria

Aquele cidadão entrou na loja logo nos primeiros minutos do dia. Os computadores  se quer tinham inicializado. Ainda pensavam os funcionários sobre qual seria a primeira tarefa do dia. Não tinham muitas opções, sempre há uma tarefa que deve ser executada antes das outras. O que tinham então eram pensamentos fingidos, deliberações com o propósito de enganar o espírito, mentir autonomia e propriedade. Esperavam o trivial, tudo aquilo que quando se tem, não se quer mais, e quando não se tem, seguro desemprego e bolsa família.  Reclamar é também agradecer pela oportunidade. Só que aquele cidadão que entrou na loja (nos primeiros minutos do dia) talvez não tivesse do que reclamar. Pois sorria.
                Imagine só! Pense num morador de rua, construa o corpo da fome, os trapos da tendência winter’s street, cabelos em louvor a Jah e tudo mais que se pode arruinar. Dê a ele cara de drogado, fala apressada, fissura da pedra, essas coisas do imaginário urbano. Coloque-o em um ambiente lotado de livros, elitizado, você sabe, paquiderme na loja de cristais. Evite pensar na cor da pele (isso foi por sua conta), não seja um Feliciano da vida. Agora, junto ao cidadão já bem formado em sua cabecinha, coloque um vendedor antigo na casa, calejado da clientela, ansioso por uma boa venda, um salto para o topo do ranking. Temos uma bela montagem.
                Faceiro da vida, o cidadão se dirigiu ao vendedor e balbuciou palavras conhecidas:
                “Tem gelo e fogo, gelo e fogo?”
                “Não entendi, amigo.”
                “Aquele livro, gelo e fogo.”
                “Queres dizer Crônicas de Gelo e Fogo?”
                “Isso ai, gelo e fogo, gelo e fogo.”
                “A coleção está ali, ó!”
                “Ali?”, apontou o cidadão para o primeiro livro que viu deitado sobre a mesa dos “mais vendidos”.
                “Não amigo, lá ó!”
                “Esse aqui?”, apontava o livro ao lado do anterior.
                “Não, não. Presta atenção em mim. Lá ó!”
                “E quanto tá?”, mal tinha visto os livros, já queria saber o preço.
                “É cinquenta e quatro e noventa.”
                “Tá bom, valeu. Tchau!”
                Virou as costas. Vale saber que o vendedor disse o preço do volume mais caro da série, já com o intuito de correr o cidadão da loja e deixar os clientes à vontade. Isso é recorrente em comércios: miseráveis não entram.
                O pobre cidadão nervoso foi um dos motivos das risadas de descontração. Muito se falou nele. Travado de coca, doente,  acho que ele é assim mesmo, vamos passar para o novato da equipe, uma forma de batismo, marcar a pele com ferro quente.  Tomara que não volte.
                Mas ele voltou, no outro dia, mais sorridente e faceiro do que nunca. Um mistério o que faz o cidadão feliz. O vendedor, o mesmo de antes, pois ele sempre está lá, sem como fugir, abordou o cidadão com voz firme -  será que ele vai dar em vim todos os dias aqui? As mãos nas costas, o peito estufado, a voz de macho que não era dele.
                “Posso lhe ajudar, amigo?”
                A mão limpa esticada em cumprimento. O nojo de apertar a mão do cidadão; mais forte a obrigação profissional e as câmeras de vigilância - que vigiam funcionários -  do que o asco social incrustado no espírito dos mais ou menos bem posicionados.
                “Eu quero um dicionário inglês-português.”
                “Um dicionário?”
                “Inglês-português, inglês-português.”
                “Tá, olha aqui ó. Tenho este ó, Oxford, trinta e nove o sem CD e quarenta e nove o com CD. Tu escolhe. O CD vem com o conteúdo do dicionário.”
                “O sem CD é mais barato né?”
                “Sim, é trinta e nove e noventa.”
                Vendedor e cidadão se olhavam. Carrancudo e sorridente, um sorriso cheio de dentes, sabe-se lá se o sorriso é pedra ou felicidade. Pode ser doença. Era o que pensava a colega ao lado, vendo toda ação com olhos de quem vê criança raquítica pedindo comida. Outro colega, em risadas, se escondia. Cada um na sua razão. A cena tinha tudo de engraçado e triste.
                “Tá, eu volto depois. “
                “Tudo bem, amigo. Até a próxima.”
                Enquanto o vendedor mostrava os inglês-português para o cidadão, uma venda de quase mil reais passou ombro a ombro com ele, ficando com a colega de trás. A venda do dia. Em números, a colega já podia ir para casa e curtir o resto da tarde. O vendedor levaria mais umas horas para atingir a meta diária e dar seu dia por vencido.
                E a fila andava depressa, livro sobre livro, vendas e negociações. O trem corria nos trilhos e fazia vácuo em quem ficava para trás. Ia bem o vendedor, telefone e telefone, seis vezes no cartão, é pra presente?, amanhã estará aqui, vem de Pelotas. Só um momentinho, por favor.
                A loja bombando, livro faltando. Um breve momento de ócio, parada para pensar na próxima ação, o vendedor ligaria para avisar os clientes que os livros encomendados não viriam, estavam em falta na distribuidora. Debruçado no balcão, telefone na orelha, todo mundo atendendo. A normalidade insana dos dias de trabalho.
                Na ponta da vitrine, do lado de fora da loja, despontou o cabelinho quase rasta. O sorriso e os olhos estalados. Não vai entrar, não vai entrar. Entrou.
                “Puta que pariu!”
                Fingiu falar com alguém ao telefone.  Um colega que atenda esse maluco. O cidadão sorriu largamente para o vendedor, parecia criança encontrando a mãe. Olhar breve, meneio de cabeça para não parecer rude e blá, blá, blá. A colega do parágrafo acima, comovida, ofereceu-se para ajudar o visitante.
                “Eu quero o dicionário inglês-português, inglês-português.”
                “Qual foi o dicionário que tu mostrou pra ele.”
                “Foi aquele ali, ó”, apontou o Oxford, sem tirar o fone da orelha.
                “É esse aqui, amiguinho?”
                “É esse mesmo. Tá aqui o dinheiro.”
                Um bolinho de moedas e notas fora jogado sobre o balcão. Era um real, dois reais, centavos e centavos de real. A colega precisou contar moeda por meda, separar as iguais e desamassar as notas bêbadas. Aquele sorriso de orelha a orelha. Vinte e três e noventa. O vendedor aproximou-se com ar de segurança, pretendia proteger a colega de possíveis ataques do marginal.
                “Peraí que vou tentar um bom desconto para tu levar esse dicionário.”
                As mãos e os olhos corriam loucos pelos livros. Abria e folheava o primeiro que encontrasse. Uma fome por leitura que  há muito não se via.
                “Olha amiguinho, esse dinheiro não dá. Tentei todos os descontos possíveis. Mas não deu mesmo. Desculpa, volta outra hora, eu guardo o dicionário pra ti.”
                “Tá, e esse de filosofia, quanto é? Pode ser esse, né?”
                “É vinte e cinco. Esse aí dá. Queres?”
                “Não, não. Eeu quero o dicionário inglês-português, inglês-português.”, saiu a passo e deixou o dinheiro com a colega.
                “Olha aqui teu dinheirinho, não esquece.”
                “Moça, moça, posso deixar contigo, tu cuida pra mim?”
                Certo que correu uma lágrima pelo rosto da colega.
                “Amiguinho, não posso ficar com teu dinheiro. Leva, mas cuida, não perde.”
                “Tá, tá.”
                Só deu pra sentir o vento da passagem do cidadão pela loja. Quase saiu antes da porta abrir. Sabe-se lá onde ia e quando voltaria.
                “De onde será que ele tirou esse dinheiro? Foi tão rápido, não deu tempo de roubar tantos trocados assim!”, levantou o vendedor.
                “Vai ver ele pediu, oras. Não precisa ser roubo.”,defendeu. A colega, claro.
                “Eu acho que ele tá chapado.”, disse outro funcionário, vindo do fundo da loja, pouco a par do acontecido.
                “Dei mais de quinze por cento e mesmo assim não deu. Uma pena, ele parece muito a fim de ter o dicionário.”
                Fingiam voltar a seus afazeres. Todos pensavam no rumo do cidadão, onde ia, com quem iria, o que fazia. Talvez voltasse um dia.
                Mas toda fome exige pressa.  
                “Moça, moça, acho que agora o dinheiro dá”.
                O cidadão entrou na loja em silêncio e surpreendeu a todos. Quando viram, o dinheiro já estava novamente largado sobre o balcão. Agora parecia mais, uns trocados extras, mais moedas. E aquele baita sorriso de orelha a orelha.
                A colega juntou os papéis amassados e as moedas espalhadas. Contou e contou e contou, deixou sair o ar que insistia em permanecer nos pulmões. Ar residual do turbilhão de emoções que vivia com aquele jovem faminto por leitura.
                Ela olhava para o sistema, mudava descontos, digitava senhas mágicas que aumentavam aas possibilidades de o cidadão sair com o dicionário. Caras e bocas, balanço de cabeça de quem pensa em uma solução. Pronto.
                “Agora acho que vai dar.”
                Não tinha mais para onde ir tanto sorriso. Não cabia no rosto e no espírito a felicidade daquele rapaz. Pegou a sacola com todos os dedos. Enrolou o plástico na mão direita, quase cortando a circulação, apertou o dicionário contra o peito e saiu a passos mais rápidos que antes. Parecia fugir com o volume, para que ninguém o tirasse dele. Era uma criança em noite de Natal.
                O senso comum me manda dizer que todos aprenderam uma lição. Mas você sabe, não é verdade.
                “Fico pensando o que ele vai fazer com o dicionário.”
                “Ele vai ler, oras.”, defendeu, ela.
                “Mas não se lê dicionários. Se usa para pesquisa.”
                “Eu acho que ele vai ler. E acho que ele vai voltar.”
                “Esse negócio de dar esmolas não leva o país pra frente. Assim ficamos na mesma: o governo dá bolsa família, as pessoas dão esmola... Quem vai salvar esse garoto? Ele precisa de um emprego!”
                “Você daria um emprego a ele?”
                “Bem, eu não, mas esse governo paternalista tem projetos de inclusão, não tem?”
                “Você daria um emprego a ele?”, insistiu a colega, enfática e irada. Como se terminasse a especulação sobre o novo cliente. “Agora ele é cliente, merece respeito.”
                E nada mudou na vida da gente vendedora.
                O cidadão agora é um cidadão com dicionário inglês-português.
                Foi bonito. E é raro. Raríssimo.

                 
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Rody Cáceres
Escrever sobre si é aquilo. Aquilo que imaginamos, aquilo que iludimos. É buscar nos outros o que não encontramos em nós mesmos. Gosto de dizer que sou uma tentativa. Enquanto tento, ninguém me cobra o resultado. Mas tenho um blog: www.blogdorodycaceres.blogspot.com. Lá você me encontra tentando (sem trocadilhos). Contato: rody.caceres@hotmail.com.

Um comentário:

  1. Eu sei bem como é...
    Amei Rody. Tens muitos textos legais, mas este, este eu nem sei o que falar.
    Talvez um osso na garganta explicaria melhor.
    Abraços.

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